Em 1947, o teórico e escritor André Malraux concebeu a figura do museu imaginário para falar sobre como as capacidades da fotografia poderiam expandir o poder de atuação da instituição de arte. A imagem fotográfica, generosamente transportável e reprodutível, constituiria um meio para a coleção, o estudo, a comparação e, sobretudo, a inscrição de objetos na história da arte – um meio mais eficiente do que os próprios objetos. Dilatado pelos artifícios da reprodutibilidade técnica, o museu cresceria para dentro e para fora, passando a compreender coisas e chegar a lugares que antes lhe seriam fisicamente impossíveis.
Por trás dessa ideia está a expectativa de que o museu moderno, mais do que um lugar para armazenar preciosidades, opere como um princípio organizador. Na crítica de Douglas Crimp, o museu aparece como um dispositivo foucaultiano, destinado aprover ordem e contenção para formas culturais a partir da reprodução de discursos e regimes de mostração. Como implicado no título de algumas traduções do ensaio de Malraux – o museu sem paredes –, não há nada que impeça esse dispositivo de depreender-se do próprio edifício e seguir funcionando. De fato, no ápice do capitalismo de informação, em que os aparelhos sociais transitam para regimes difusos de controle, não é de espantar que muitos museus também precisem fazê-lo. A ligação da instituição com o seu edifício persiste quase como um vestígio metonímico.
A pandemia global acelerou essa desintegração dos museus nas redes de comunicação. Talvez o que estejamos acompanhando hoje pela internet seja o museu imaginário a todo vapor, embaralhando e reescrevendo nossos repertórios estéticos por força da pura inundação cognitiva. Instituições consolidadas, mas despreparadas para esse jogo, perdem espaço para plataformas de compartilhamento de imagens como arenas de legitimação artística e disputa de narrativas históricas. Nesse contexto, o artista Brad Troemel aponta para a emergência de um mercado de arte “pós-gosto”, que encontra seu lastro não mais no juízo dos especialistas, mas no investimento afetivo das comunidades de fãs. O museu moderno, incapaz de impor suas hierarquias aos sistemas de informação online, se deixa capturar pela pulsão populista das mídias sociais. No interesse de renovar a própria autoridade, ele cobiça o status de marca ou se camufla como cenário instagramizável.
O momento demanda que os museus se repensem. Como faz a instituição para se manter móvel e socialmente relevante diante da abundância de “conteúdo” à nossa disposição? Poderia a internet ser mobilizada na renovação das capacidades do museu para o diálogo e a produção do comum? Poderia a recém-ampliada porosidade institucional ser aproveitada na fabricação de formas mais transversais de se conectar com os públicos, manejar acervos e atuar no mundo? É possível para o museu compactuar com outras plataformas de comunicação de modo a não apenas resistir, mas colaborar no desarmamento da violência memética sobre culturas menores, dissidentes e estrangeiras? Seria o museu capaz de se constituir como um modulador de frequências, que possa desacelerar a taquicardia informacional a um nível que permita a participação significativa de outros atores humanos e não humanos em vez de atropelá-la?
Em suma, como pode o museu simultaneamente aderir à pluralidade das redes e configurar um espaço de resistência aos caprichos corporativos dos seus algoritmos?
O projeto Museu Sem Paredes busca explorar essas questões a partir da recente reabertura do Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio del Santo, o MAES, após uma reforma que recuperou elementos da sua arquitetura original e franqueou o espaço museográfico às particularidades do entorno. Como um literal museu sem paredes, com as janelas abertas ao centro da cidade de Vitória, o MAES nos serve de inspiração para sondar os modos pelos quais a instituição de arte opera, dentro e fora do próprio edifício, como um sistema de representação e discursos.
Nesse site, o visitante vai encontrar uma pequena coleção de projetos de museu em realidade virtual, termo que aqui se refere não apenas a tecnologias de imagem imersivas, como também a tudo aquilo que persiste como possível e potente por baixo das normativas institucionais. Há, de um lado, propostas que de fato idealizam o museu por meio de espaços computacionalmente simulados, interativos e por vezes fantásticos. De outro, propostas que se atracam diretamente com formas mais convencionais e específicas da instituição, no sentido de expandir o seu escopo de atuação pública. E, no meio, uma série de audioguias, filtros de realidade aumentada e simulacros digitais que tomam o desancoramento do MAES da realidade offline como pretexto para multiplicá-lo midiaticamente.
Agregados, esses três modos de expressão da virtualidade buscam dar conta do caráter imaginário do museu como nada menos do que radical, na acepção do filósofo Cornelius Castoriadis: feito o magma de que se constituem todas as instituições sociais, e que também é o combustível que nos permite recriá-las diante da emergência de outros mundos.